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sexta-feira, 5 de outubro de 2012

09/09/2012



Eu crio histórias para tornar a realidade mais ou menos cruel... o meu ponto de vista é sempre uma farsa, um novo enredo pra um novo espetáculo...

“Eu tenho um medo constante de que aconteça algo comigo também!”
Vamos resistir. Vamos retomar aquilo que é nosso. Somos potentes roedores. Vamos roer esses muros, vamos retomar e refazer essa marcha. Um depois do outro, regressar àquilo que é nosso. Aquilo que nunca deveria ter deixado de ser nosso.
Vamos voltar pra casa, vamos acabar com esse “climão”. (riso alto, estridente, cambaleante)

Os soldados bons moços são... (rí)
Eles se aproximam nos olham.
Eu, tão somente eu.
Aicha de nome.
Ninguém em existência.

Caminhando nessa noite, a procura de algo que não sei, de alguém que não conheço, porque passou da linha e sumiu como muitos outros pelo deserto.
A rua é do inimigo, a casa não é minha mais.
O soldado que se aproxima.
O toque.
Meus pés já não tocam o chão.
Arrastada.
Encostada.
Levantada.
Invadida.
Um silêncio.
(pausa, o olhar não deve se mover, suspender a respiração)

Não choro.
Não grito.
Não me movimento.
Não mostro a ele o seu troféu.
Não choro.
Invadida.
Não grito.

Posso colocar-me a seus pés?
Escorre entre minhas coxas. Não grito.
(suspiro longo)
Invadida.
(deita-se)

Os soldados até que são bons moços... (respira fundo)
Nesse lugar ocupado...

Meu corpo é puro. Meu corpo apenas é.  Ferir o meu corpo não resolve e não me faz desistir.
Líquido que escorre pela minha coxa. Vermelho. Branco.
Meus olhos que não veem mais. Olhos que só olham dentro.
Fecho os olhos para que outros pares de olhos se abram em mim.
Fecho os olhos para que se abra dentro novamente a certeza e o desejo.

Levanto-me, caminho lento. Pernas bambas. Boca seca. Tudo escorre. Vermelho. Meu corpo liquido.
Soldado distante, liquido que escorre dos olhos. Água salgada.
Não digo o nome.
Só o liquido que escorre.

Caminho lento. Chego lento a lugar nenhum. Caminho. O caminho.
O medo é tudo aquilo que não vejo. O Caminho é lento. Pequenos silêncio. Liquido escorre com soluço pela primeira vez.
Abro o olho lento, ninguém nas ruas.  Olho-me. Ninguém na rua, ninguém aqui.
A barriga vai crescer, laço nada terno tu e eu. Isso já foi dito em algum lugar.
Laço eterno e não terno. Tu e eu. Tu, ele e eu.
Laço eterno. Fecho os olhos, deito.

Vivenciada, viscerada.
Inventada.
Eu invento historias para tornar a realidade mais ou menos cruel. Eu recrio tudo aquilo pra tornar à volta a mim mesma mais ou menos cruel. Refaço o caminho do outro, como se fosse o meu. Pra refazer em mim uma historia que perdi aqui. Refluindo. Fluindo. Desaguando. Relembrando. Invasão de mim.

Aquele homem e eu. Muro. Escuridão. Encostada no muro. Outro muro.
Forte. Alto. Ele e eu.
Acordo.

(desperta do delírio passado, direta com o publico) 
Com licença, você continua aí?
Eu também tenho um cigarro, deseja?
Permita-me mostrar o direito que eu tenho sobre meu próprio corpo território. Direito sobre decidir a mim mesma, sobre quando eu devo andar.
Permita-me andar só. É só isso que eu te peço. Licença pra caminhar sozinha nessa noite quente, enquanto tudo escorre. Enquanto meus olhos tentam se abrir.
Enquanto você pensa que a sua ajuda me basta.
Enquanto você pensa que eu estou em estado de emergência.
Enquanto tudo escorre entre as minhas coxas.
Enquanto eu sonho com o canto secreto dos árabes. ( pausa, reflete), alguém também já disse isso.
Enquanto eu sonho com a serenidade que escorre dos seus lábios.
Enquanto seus olhos se abrem no meu corpo. Eu, tu e ele.

Você quer um cigarro? Um pedaço de pão? É só isso que eu te ofereço: 1 pedaço de pão e ficar aqui sentado, olhando essa noite quente. Não tenha medo. Pode sentar aqui comigo.
Vamos decidir juntos para onde vamos quando o sol chegar.
Quando amanhecer, vamos repartir o que temos e seguir.
Tudo bem, minha mente também não consegue esquecer. Vamos dividir esse prato. Tomar mais um chá que deixa tudo calmo.

(Retorno ao delírio) 
Pára de me dar aspirinas, minha dor de cabeça não passa com isso.
Minha dor de cabeça só vai passar quando você parar de apertar a minha nuca.
Tira a mão de mim. Pára de me medicar.
Façamos um acordo: eu deixo de tomar sua água e sua aspirina, eu páro de gritar na sua orelha, se você tirar a mão da minha nuca.

Estamira ao avesso...
O som do vento.
Cabras falam, eu juro!
Piloto... vôo que nunca rasgou o céu de sua pátria.

"Quem suporta chega a sombra" – ditado saharaui.

Peito aberto de frente ao Front.
Defronte do soldado que se aproxima, debaixo do sol que não me deixa ver nada muito bem o que está acontecendo.
Nosso problema é político. Queremos uma resolução política. Não é uma guerra por religião ou por raça, é uma guerra por auto-determinação. 

 (Escrito depois de uma visita à Asociación de Familiares Presos y Desaparecidos Saharauis - Afrapedesa

2 comentários:

  1. Ékala, gostei demais! Ai, que dor na alma viver nesse mundo...Parabéns, minha querida!

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  2. obrigada, compartilhemos, lemo-nos, que a dor um dia passa....

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