Páginas

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Do lado de lá, do lado de cá, qual a diferença? Indígenas, Saharauis, Curdos, estão todos morrendo, estão todos delimitados, expulsos, aprisionados... Ei, até quando os primeiros habitantes dessa terra precisam pedir/implorar para permanecerem vivos com dignidade?




Carta da comunidade Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay-Iguatemi-MS para o Governo e Justiça do Brasil. 
Nós (50 homens, 50 mulheres e 70 crianças) comunidades Guarani-Kaiowá originárias de tekoha Pyelito kue/Mbrakay, viemos através desta carta apresentar a nossa situação histórica e decisão definitiva diante de da ordem de despacho expressado pela Justiça Federal de Navirai-MS, conforme o processo nº 0000032-87.2012.4.03.6006, do dia 29 de setembro de 2012. Recebemos a informação de que nossa comunidade logo será atacada, violentada e expulsa da margem do rio pela própria Justiça Federal, de Navirai-MS. Assim, fica evidente para nós, que a própria ação da Justiça Federal gera e aumenta as violências contra as nossas vidas, ignorando os nossos direitos de sobreviver à margem do rio Hovy e próximo de nosso território tradicional Pyelito Kue/Mbarakay. Entendemos claramente que esta decisão da Justiça Federal de Navirai-MS é parte da ação de genocídio e extermínio histórico ao povo indígena, nativo e autóctone do Mato Grosso do Sul, isto é, a própria ação da Justiça Federal está violentando e exterminado e as nossas vidas. Queremos deixar evidente ao Governo e Justiça Federal que por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso território antigo, não acreditamos mais na Justiça brasileira. A quem vamos denunciar as violências praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do Brasil? Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra nós. Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos morrer todos mesmo em pouco tempo, não temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos aqui acampados a 50 metros do rio Hovy onde já ocorreram quatro mortes, sendo duas por meio de suicídio e duas em decorrência de espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas. Moramos na margem do rio Hovy há mais de um ano e estamos sem nenhuma assistência, isolados, cercado de pistoleiros e resistimos até hoje. Comemos comida uma vez por dia. Passamos tudo isso para recuperar o nosso território antigo Pyleito Kue/Mbarakay. De fato, sabemos muito bem que no centro desse nosso território antigo estão enterrados vários os nossos avôs, avós, bisavôs e bisavós, ali estão os cemitérios de todos nossos antepassados. Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui. Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação e extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais. Já aguardamos esta decisão da Justiça Federal. Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui. Visto que decidimos integralmente a não sairmos daqui com vida e nem mortos. Sabemos que não temos mais chance em sobreviver dignamente aqui em nosso território antigo, já sofremos muito e estamos todos massacrados e morrendo em ritmo acelerado. Sabemos que seremos expulsos daqui da margem do rio pela Justiça, porém não vamos sair da margem do rio. Como um povo nativo e indígena histórico, decidimos meramente em sermos mortos coletivamente aqui. Não temos outra opção esta é a nossa última decisão unânime diante do despacho da Justiça Federal de Navirai-MS. 

Atenciosamente, 
Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay




segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Um encontro

É certo que o projeto Exílius ao longo desses 5 anos sobrevive e resiste dos acasos e encontros com grupos e pessoas que, de alguma forma, compartilham a inquietação de nossa sútil resistência em Front(eiras).
Não dessas fronteiras castradoras que nos impede de ver o outro como semelhante a nós mesmos. Não essa fronteira que cria barreiras e destrói identidades, mas sim dessas fronteiras permeáveis, repletas de linhas de fuga, com desejo de romper com a distância e com a indiferença, que reconhece e respeita a identidade de um grupo.

Hoje, por subjetividades, por impulso, por forças que nos guiam para conhecer alguém 'quase sem querer' e por razões que a própria razão não compreende (por mais paradoxal que isso possa parecer) tive a honra e o prazer de conhecer ao vivo e a cores, o fotógrafo "Rogério Ferrari":

Saara Ocidental/ Saarauí/ Foto de Rogério Ferrari
A admiração por suas fotos já existia desde o instante que, por acaso,  encontrei-o pelo mundo virtual.
Em seu site "existências resistências", encontramos a seguinte frase:

"Uma fotografia é algo que nos pega pela mão e nos diz “venha ver”. 
O problema não é somente o que nos leva a ver, e sim, sobretudo, a forma como nos leva a ver. Se na outra mão da fotografia vão a verdade e o afã de justiça, então vale a pena viagem."

Essa frase sempre ecoou junto a mim, atriz, pesquisadora, em busca de resposta, toda vez que me perguntavam o porquê eu havia escolhido ir pro outro lado do oceano, trabalhar com crianças saharauis, se, aqui no Brasil, existem tantas outras crianças, que precisam de tanto trabalho quanto lá.
A resposta nunca encontrei sozinha. A 'pena' de uma viagem talvez tenha vindo com a resposta do Rogério.
Talvez, porque quando nos deparamos com o outro, quando olhamos profundamente e compartilhamos a história do outro, ela passa a fazer parte de nós mesmos.
Talvez, porque o nosso mundo se reflete nos olhos de quem nos olha.
É assim, além dos idiomas, dialetos, cores, dores, somos todos em algum momento um só, refletindo e sendo refletidos, necessitando do outro pra termos parâmetros de nós mesmos. 

Saara Ocidental/Saarauí/ Rogério Ferrari

Voltando de São Paulo, no ônibus, leio no livro de Rogério, "Curdos uma nação esquecida":

"A Fotografia e o fotógrafo podem ir além da luz e das sombras. Uma posição em defesa da vida e de uma sociedade justa deve transcender e superar o risco da arte como panfleto. Longe disso, o fotógrafo ou o gari, cada qual no seu fazer, não devem tergiversar sobre a necessidade de refletir e atuar sobre o seu tempo. Se o tempo é de barbárie, pois, como negligenciar isso? Constatar o tamanho das injustiças não significa admiti-las como inevitáveis. Em um tempo de conceitos e interesses escusos é preciso ver claro. De que forma, portanto, a pergunta será respondida para que não continuemos sob essa tragédia pessoal e global? O que significa protestar contra o sofrimento, como algo distinto de reconhecer sua existência? Urge romper a inércia e despir-nos da apatia que vestimos a cada manhã."

Pronto, de repente, ele novamente conversa comigo, além de suas imagens.

E pra quem não conhece, segue os links do trabalho do Rogério:
http://rogerioferrari.wordpress.com/
http://www.flickr.com/photos/rogerioferrari


Rogério Ferrari trabalha como fotógrafo independente desenvolvendo o projeto Existências-Resistências, tema que retrata a luta por terra e autodeterminação de alguns povos e movimentos sociais. O projeto evidencia, através das imagens, publicação de livros, debates e exposições fotográficas, o lado desconhecido de conhecidos conflitos: Palestinos sob ocupação israelense; Curdos, na Turquia; Zapatistas no México; Movimento dos Sem-Terra no Brasil; refugiados palestinos no Líbano e na Jordânia; refugiados Saarauis no deserto do Saara e nos territórios ocupados pelo Marrocos; Mapuches no Chile, e os ciganos na Bahia.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012


Exílio significa ser banido, degredado.
Expatriação voluntária ou não.
Deixar o lugar que lhe foi dado, por direito ou por dever.

Exílio no próprio corpo, desfazer-se de si mesmo, redescobrir ações e descobrir ações inata. 
Criar espaços, linhas de fugas, um instante de exílio.
Trânsito livre entre a realidade e a ficção. Permissão e só.
Imaginação em fluxo.

Cito Ileana Dieguez Caballero:

" A teoria como prática interdisciplinar ou in-disciplinar – prefiro hoje dizer – dialoga com a expansão das artes, mas também com a expansão e a problematização da própria categoria de arte, considerando os fluxos entre arte e vida num duplo sentido: não apenas a partir das transformações que a arte veio colocando em nossa vida contemporânea, como também incluindo, muito especialmente, as mutações e contaminações que o espaço do real e as práticas cidadãs introduziram no campo cada vez mais expandido da arte e de todos os sistemas de representação." 

09/09/2012



Eu crio histórias para tornar a realidade mais ou menos cruel... o meu ponto de vista é sempre uma farsa, um novo enredo pra um novo espetáculo...

“Eu tenho um medo constante de que aconteça algo comigo também!”
Vamos resistir. Vamos retomar aquilo que é nosso. Somos potentes roedores. Vamos roer esses muros, vamos retomar e refazer essa marcha. Um depois do outro, regressar àquilo que é nosso. Aquilo que nunca deveria ter deixado de ser nosso.
Vamos voltar pra casa, vamos acabar com esse “climão”. (riso alto, estridente, cambaleante)

Os soldados bons moços são... (rí)
Eles se aproximam nos olham.
Eu, tão somente eu.
Aicha de nome.
Ninguém em existência.

Caminhando nessa noite, a procura de algo que não sei, de alguém que não conheço, porque passou da linha e sumiu como muitos outros pelo deserto.
A rua é do inimigo, a casa não é minha mais.
O soldado que se aproxima.
O toque.
Meus pés já não tocam o chão.
Arrastada.
Encostada.
Levantada.
Invadida.
Um silêncio.
(pausa, o olhar não deve se mover, suspender a respiração)

Não choro.
Não grito.
Não me movimento.
Não mostro a ele o seu troféu.
Não choro.
Invadida.
Não grito.

Posso colocar-me a seus pés?
Escorre entre minhas coxas. Não grito.
(suspiro longo)
Invadida.
(deita-se)

Os soldados até que são bons moços... (respira fundo)
Nesse lugar ocupado...

Meu corpo é puro. Meu corpo apenas é.  Ferir o meu corpo não resolve e não me faz desistir.
Líquido que escorre pela minha coxa. Vermelho. Branco.
Meus olhos que não veem mais. Olhos que só olham dentro.
Fecho os olhos para que outros pares de olhos se abram em mim.
Fecho os olhos para que se abra dentro novamente a certeza e o desejo.

Levanto-me, caminho lento. Pernas bambas. Boca seca. Tudo escorre. Vermelho. Meu corpo liquido.
Soldado distante, liquido que escorre dos olhos. Água salgada.
Não digo o nome.
Só o liquido que escorre.

Caminho lento. Chego lento a lugar nenhum. Caminho. O caminho.
O medo é tudo aquilo que não vejo. O Caminho é lento. Pequenos silêncio. Liquido escorre com soluço pela primeira vez.
Abro o olho lento, ninguém nas ruas.  Olho-me. Ninguém na rua, ninguém aqui.
A barriga vai crescer, laço nada terno tu e eu. Isso já foi dito em algum lugar.
Laço eterno e não terno. Tu e eu. Tu, ele e eu.
Laço eterno. Fecho os olhos, deito.

Vivenciada, viscerada.
Inventada.
Eu invento historias para tornar a realidade mais ou menos cruel. Eu recrio tudo aquilo pra tornar à volta a mim mesma mais ou menos cruel. Refaço o caminho do outro, como se fosse o meu. Pra refazer em mim uma historia que perdi aqui. Refluindo. Fluindo. Desaguando. Relembrando. Invasão de mim.

Aquele homem e eu. Muro. Escuridão. Encostada no muro. Outro muro.
Forte. Alto. Ele e eu.
Acordo.

(desperta do delírio passado, direta com o publico) 
Com licença, você continua aí?
Eu também tenho um cigarro, deseja?
Permita-me mostrar o direito que eu tenho sobre meu próprio corpo território. Direito sobre decidir a mim mesma, sobre quando eu devo andar.
Permita-me andar só. É só isso que eu te peço. Licença pra caminhar sozinha nessa noite quente, enquanto tudo escorre. Enquanto meus olhos tentam se abrir.
Enquanto você pensa que a sua ajuda me basta.
Enquanto você pensa que eu estou em estado de emergência.
Enquanto tudo escorre entre as minhas coxas.
Enquanto eu sonho com o canto secreto dos árabes. ( pausa, reflete), alguém também já disse isso.
Enquanto eu sonho com a serenidade que escorre dos seus lábios.
Enquanto seus olhos se abrem no meu corpo. Eu, tu e ele.

Você quer um cigarro? Um pedaço de pão? É só isso que eu te ofereço: 1 pedaço de pão e ficar aqui sentado, olhando essa noite quente. Não tenha medo. Pode sentar aqui comigo.
Vamos decidir juntos para onde vamos quando o sol chegar.
Quando amanhecer, vamos repartir o que temos e seguir.
Tudo bem, minha mente também não consegue esquecer. Vamos dividir esse prato. Tomar mais um chá que deixa tudo calmo.

(Retorno ao delírio) 
Pára de me dar aspirinas, minha dor de cabeça não passa com isso.
Minha dor de cabeça só vai passar quando você parar de apertar a minha nuca.
Tira a mão de mim. Pára de me medicar.
Façamos um acordo: eu deixo de tomar sua água e sua aspirina, eu páro de gritar na sua orelha, se você tirar a mão da minha nuca.

Estamira ao avesso...
O som do vento.
Cabras falam, eu juro!
Piloto... vôo que nunca rasgou o céu de sua pátria.

"Quem suporta chega a sombra" – ditado saharaui.

Peito aberto de frente ao Front.
Defronte do soldado que se aproxima, debaixo do sol que não me deixa ver nada muito bem o que está acontecendo.
Nosso problema é político. Queremos uma resolução política. Não é uma guerra por religião ou por raça, é uma guerra por auto-determinação. 

 (Escrito depois de uma visita à Asociación de Familiares Presos y Desaparecidos Saharauis - Afrapedesa

07/09/2012


Do outro lado, eles.
Um salto e tudo está aqui do nosso lado.
Fuzil. Confiança que escorre na pele rasgada de sol.
Boca rachada.
Certeza de quem são. Medo que não cessa.
O muro que impede a ultrapassagem, não impede de ver o horizonte.
O lado de lá é o mesmo de cá. Areia por todos os lados.
Minas ativas.
Círculos de pedra.
Barricadas de pedra.
De frente com todo o medo de deixar de ser.
Animal raivoso, vontade de cruzar a linha de frente.

Mohamed cruzou: 2 dias a pé, dois dias de caminhão.
8 anos de idade.

Atento ao caminho, olha por onde pisa.
Segue andando nas linhas do pneu.
Dá tua mão eu vou com você até ali.

 Compreensão de um menino que não vinha, que deixou mãe, pai e irmãos do outro lado.
Ele foi trazido por anjos.
1968 – AI-5, torturas, 44 anos.
1975 – ele tinha 8 anos.

Eu nada, eu pouca coisa, eu aqui. Barulho.
Poesia que não vem.
Pele ardida do sol.
Azzzziiiiizzzzzaaaa.
Saudade que deixou de vir.
Manhã sinistra.
Impaciência.
Ausência minha.
Falta de vontade.
Arte que não escorre.
Diário que não acontece.

06/09/2012

Amigo, eu tô dividindo com você somente esse pedaço de pão. Só isso. É só você me perguntar o que eu realmente quero que não será nada difícil para você compreender: QUE EU ESTOU AQUI PEDINDO SÓ PRA VOCÊ CONVERSAR COMIGO. É que tantos dias se passaram que você quase se esqueceu de mim. Mas, eu não esqueci de você. Eu não esqueci de você enquanto caminhava dia e noite sem parar até cruzar a fronteira, até encontrar com outros de mim. Até que uma barreira se ergueu entre nós, até que não pude mais te olhar, até que seus olhos se foram se apagaram da minha memória. Mas, agora depois de tanto tempo você está aqui e eu não sei mais como se abraça você. Esquecemos como fazer isso. Eu to cheia de protocolos, de barreiras de segurança, é que assim não corremos os riscos dentro de nossas pequenas próprias fronteiras-pele. Desculpa, eu to vomitando palavras em você. Eu sei.

Eu crio histórias, para tornar a realidade mais ou menos cruel.... meu ponto de vista é sempre uma farsa, um novo enredo para um novo espetáculo.