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sexta-feira, 4 de novembro de 2011

A memória e o sentir.

Dois meses!! Esse é o tempo que me afasta dos saharauis, além de 6.908km com um oceano no meio.

Enquanto o Silas preparava a nova trilha sonora pro espetáculo, era como se eu pudesse tocar as mãos de Aziza de novo. Pudesse sentir o seu cheiro, suas birras de menina, seu estado de alerta e de desejos.

Era como se eu revivesse naquele momento as chamadas de Chrifa de manhã, a tarde e a noite (sim, a noite inteira!). Ou ainda ouvisse o Mohamed “Elika”...

Como um som pode reavivar tudo isso dentro de mim? Como o tempo e o espaço podem ser quebrados, como cristal, somente por escutar uma gravação? Atualização de tudo o que vivi.

Sinto falta do silêncio preenchido, de caminhar na beira da praia com Aicha.

Sinto falta da resistência que tínhamos em seguir em frente, de compartilhar com eles essa resistência, esse facho de vida, que me tomou pelas mãos e me transformou!!
Que me libertou de milhares de medos, de um passado anterior à eles, que agora nem faz mais sentido, que não sobreviveu nem como memória, que nenhuma violência ao meu corpo hoje é representativa, porque esse encontro me mostrou a força acima de tudo, acima do bem e do mal, acima de todos que se aproximam, uma razão pela qual se viver, se celebrar o “existir”.

É preciso celebrar a existência de cada instante, de cada momento, de cada dor, por que pode realmente ser o único.

Quando soube do falecimento de um garoto, adolescente, durante um protesto, chorei feito bebê, sentada sozinha nessa mesma escrivaninha, sabia aonde me metia, mas, agora, eles deixaram de ser um povo, um bloco, tornaram-se pra mim pessoinhas lindas, com nome, com presenças, com memórias, com canções, com celebrações.
Depois que passou o meu susto/apego, cantei, porque era a coisa mais importantes pra ele: morrer pela libertação do Povo Saharaui, tenho certeza que esse menino sabia aonde estava e os riscos que corria e sabia que fazia por um ideal.

Não acredito na guerra como meio, nem como fim. Não acredito na mudança através das armas, mas acredito nos nossos ideais, enfrentar um tanque de guerra, para tornar realidade aquilo que se crê. Eu nunca havia visto ou sentido tão perto a guerra. Não sabia o som e o cheiro que ela tem. Essas pessoas me mostraram a cara delas, as cicatrizes nos seus corpos, a força de crianças criadas na areia, nos assobios, nos escombros e nas cestas básicas que 'voam' da Onu.

Alimentamos os seus corpos, mas não alimentamos a sua libertação.
Um referendo pode colocar um fim nisso tudo, mas quem deseja o fim daquilo que está tão distante de nós?

Algum “efeito borboleta”, alguma pólvora nos atinge aqui do outro lado do oceano?

Sou afetada hoje apenas pelas imagens que me chegam, das noticias que o Mulay e o Deid me mandam.
O conforto da minha casa, de pessoas que falam a minha língua, das roupas e dos cheiros que eu conheço muito bem, protegem-me delas.

Mas, fica em mim um desejo, nesse novo momento, desse recomeçar: de compartilhar com um grupo o existir, de dar as mãos à outras pessoas que acreditam numa mudança através da arte, retomo em mim a utopia de crer num Teatro Civil.

Continuo escutando as crianças que me fizeram acreditar na disposição de seguir acima de tudo.

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